Em um período, nem tão recente, não tão antigo na história da educação deste país, passamos por longos e tristes anos sob a regência da 5692/71. Com o controle militar vieram as práticas tecnicistas, de inspiração funcionalista e behavioristas, que não produziram, mas que com certeza reforçaram, a produção de uma escola que, pensada a partir da classe e cultura hegemônicas, excluia sistematicamente as crianças das classes populares.
Hoje, observamos em diferentes municípios e cidades, resurgirem revigorados, de forma sempre espetacular sob os holofotes da grande mídia, projetos que negam os últimos capítulos de nossa história, que viram as costas para a produção científica da educação, e voltam a alimentar práticas e discursos que tiveram uma participação efetiva na construção do que hoje apontam como o “fracasso da escola pública”.
Discursos que negam a diferença histórica, social e cultural entre os sujeitos. Que defendem uma só prática, uma só escola para todos, apesar da história já nos ter provado que quando fazemos uma escola igual, ela não é igual, muito menos para todos. Ela é a escola dos ricos para os ricos, onde os pobres são subjugados, subalternizados e finalmente excluidos. Esquecemos esta lição?
Não podemos esquecer que quando deixamos expresso em nossa nova LDB (9394/96) e nos Parâmetros e Diretrizes Nacionais nossa opção por construimos escolas que respeitassem a democracia, a cidadania e a diferença, estavamos aceitando o desafio, não de fazer uma escola igual para todos, mas o desafio de fazermos uma escola diferente, uma escolar singular, para todos. Uma escola onde todos tivessem respeitado seu direito de aprender, seu direito a conviver e crescer na diferença. No entanto, a mesma LDB coloca na agenda da educação os exames nacionais, e seus derivados: exames estaduais e municipais globais. Diferença e unidade, diversidade e exames globais. Como resolver esta equação que torna nossa escola cada dia mais esquizofrênica, como resolver o conflito ético que isso traz para nossas práticas?
“O conflito ético se coloca como inevitável quando a avaliação cumpre simultaneamente funções tão diversas, servindo cada uma delas a interesses muito diferentes”.(Sacristán, 1998: p.337).
O conflito que muitos professores vivenciam é a consciência de que as informações colhidas e mensuráveis muitas vezes não são as mais relevantes na história da relação daquele aluno com o saber. Mesmo assim tornam-se as únicas informações que aquele sujeito herdará para o resto de sua vida. Sujeito transmutado em número, número lido como fracasso e fracasso registrado, marcado pelo poder da palavra escrita, pelo poder do documento. Conflito vivido pela professora Aline:
Por que a gente no final de cada período a gente tem que dar um conceito. RR, R, B, MB[1], e o que eu estava conversando com elas, Ronald e Giovani, meus dois casos que eram críticos e que no final do ano se transformaram em caso de sucesso. Críticos porque não escreviam nem o nome e de sucesso porque hoje já conseguem escrever – com autonomia – quaisquer palavras que tenham assim os fonemas simples e já arriscam a escrita até com coisas complexas tipo no hallowen : bruxa, caldeirão, e eles começam a formular hipóteses de escrita em cima disso também. Mas eu avaliei eles como R. Isso porque eu tive que medi-los eu tive que classificá-los e compará-los com os outros alunos...será que eu fui injusta?(Aline)
É justo que uma criança vencendo todas as barreiras impostas por uma sociedade injusta, perversa, segregadora, chegue a escola, supere seus medos, recupere sua autoestima, adquira vários conhecimentos escolares sobre a lingua escrita, e ainda assim seja desqualificada? É justo que ela seja reduzida a uma letra ou um número que reforça apenas o que ele não é, não tem, não sabe?
Refletindo com Aline as professoras Cassia e Rosangela discutem sobre este modelo de escola e sobre o seu caráter normativo, homogenizador que na verdade é responsável pela produção destes alunos que se tornam “casos críticos”. Percebem que diferentes funções e práticas (exames e avaliações) que atendem por um só nome se confundem. São capazes de perceber que existem diferentes intencionalidades – que não ocupam lugares fixos nem no mundo nem em nós – que fazem da compreensão da prática avaliativa uma atividade complexa. Rosangela assim como Cassia coloca em cheque o que compreendemos por avaliação? É comparar? Pergunta uma. É colocar o individuo em caixas que não lhe servem? Questiona a outra. E não estão sozinhas nestas questões.
Mas afinal: o que é avaliação? Existe avaliação justa? Avaliar é possível? Perguntam-me as professoras quando percebem a multiplicidade de sentidos que o conceito assume em nossos discursos e práticas. Como avaliar? Como produzir uma avaliação justa em uma sociedade injusta? Encontramos algumas das respostas a estas questões na própria historia da educação. Esta prática de exame, que para muitas professoras parece indissociável e indispensável à prática pedagógica, é na verdade uma construção histórica que serve a certos objetivos políticos claros, e que já nasce marcada por seu aspecto seletivo e com a função de estabelecer hierarquia, como nos ensina Barriga:
Primeiro porque o exame foi um instrumento criado pela burocracia chinesa para eleger membros das castas inferiores. Segundo porque existem inúmeras evidências que antes da Idade Média não existia um sistema de exames ligado à prática educativa. Terceiro porque a atribuição de notas ao trabalho escolar é um herança do século XIX à pedagogia. Herança que produziu uma infinidade de problemas. Dos quais hoje padecemos.( Barriga, 2003, p.55)
Um desses problemas e a crença hegemônica de que os sistemas de avaliação são responsáveis por e produzir sucesso escolar. A crença em que submeter sujeitos diferentes a um mesmo processo produz uma igualdade. E talvez isso seja em parte verdade. Produz ou tenta produzir uma igualdade ao adestrar todos para que se submetam a esta lógica e a considerem “normal” e justa. Que estas crianças cresçam e considerem normal e justo que a inclusão de alguns justifique a exclusão de tantos. Que considerem normal e justo que as condições sócio-econômicas e culturais não sejam levadas em consideração na hora de distribuir diagnósticos, pareceres, conceitos ou notas sobre sujeitos que desconhecem, sobre realidades que desconhecem, sobre escolas que desconhecem.
Nosso desafio encontra-se hoje, não somente, mas também, em construir uma sociedade democrática onde possamos incluir de fato cada vez mais sujeitos na discussão sobre quais os bens (materiais e intelectuais) nos são realmente necessários e importantes; quais os saberes são realmente necessários e importantes para cada realidade geo-política-social; ao invés de pressupormos, de prescrevermos, de pré-conceituarmos o que é importante e necessário para um “todos” que não existe enquanto unidade, mas como pluralidade.
Os desafios para a construção desta educação, anunciados em nosso passado relativamente recente, continuam a espera de mais educadores, de mais intelectuais, dispostos a pensar com o mundo, através de um diálogo que não vise silenciar o outro, mas aprender com o outro, construir com o outro, novas possibilidades de aprendizado, novas possibilidades de existência. O convite está feito.
BIBLIOGRAFIA
BARRIGA, Àngel Diaz. Uma Polêmica em Relação ao Exame. In ESTEBAN, Maria Teresa. Avalição: uma prática em busca de novos sentidos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
ESTEBAN, Maria Teresa. O que sabe quem erra? Reflexões sobre avaliação e fracasso escolar. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
ESTEBAN, Maria Teresa. Avaliação: uma prática em busca de novos sentidos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
ESTEBAN, Maria Teresa.(org). Escola, currículo e avaliação. São Paulo: Cortez, 2005
SACRISTÁN, J Gimeno, GÓMEZ, A.I. Pérez. Compreender e Transformar o Ensino. Artmed, 1998.
SACRISTÁN, José Gimeno. O significado e a função da educação na sociedade e na cultura globalizadas. In. GARCIA, Regina Leite e MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa (org.). Currículo na Contemporaneidade: incertezas e desafios. São Paulo: Cortez, 2003.
SACRISTÁN, José Gimeno. O currículo: uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre: ArtMed, 2000.
[1] Neste momento (2008) na prefeitura do Rio ainda usávamos os conceitos RR(registra recomendações) R(regular) B(bom) e MB(muito bom). Atualmente usamos I(insuficiente) no lugar de RR.