Como professora da Rede Municipal do Rio de Janeiro desde 2001, e como pesquisadora com o Cotidiano Escolar das Classes Populares desde 2005, venho acompanhando com preocupação a implantação de políticas públicas fundamentadas em um movimento que se expande pelo mundo ocidental, tendo como modelo o estado avaliador.
Neste artigo pretendo contribuir para o debate com uma reflexão sobre os diversos aspectos que se destacam nestas políticas centradas na avaliação, que vou optar por uma questão epistemológica, tratar daqui por diante, por exames externos.
Proponho ampliar o debate sobre estes exames externos do estado avaliador, refletindo sobre suas múltiplas dimensões: técnica, política, socio-cultural e pedagógica, seu impacto e seus desdobramentos no cotidiano escolar.
Apesar de apresentá-las separadamente é preciso que fique claro que são dimensões indissossiáveis, múltiplas, que só podem ser relfetidas e compreendidas na sua complexidade de interações e tensões. Assim como as dimensões que destaco, não excluem a existência e possibilidade de incluirmos neste debate muitas outras dimensões como as psicológicas e econômicas, antropológicas e históricas, etc.
Naturalmente que ao tomar como referência uma rede municipal, precisamos dimencionar este debate dentro de seus limites, e tê-lo apenas como uma, entre muitas experiências que vem sendo desenvolvidas em tantos outros municípios, estados e países.
A rede municipal do Rio de Janeiro que conta hoje com aproximadamente 1064 escolas do ensino fundamental, passou por grandes reviravoltas curriculares tendo a questão da avaliação uma centralidade fundamental na implementação e controle destas reformas curriculares.
Entre 2001 e 2006 a rede possuia uma organização escolar mista: três primeiros anos ciclados e os seguintes organizados em séries – e, portanto, com possibilidade de reprovação. Em 2007 a secretaria de educação resolve Ciclar toda a rede, com aprovação automática e exames externos no final do período. Esta mudança encontrou forte resistência principalmente nos professores do segundo segmento (antiga 5a/8a séries) e familiares dos alunos. Em 2008 a nova gestão assume com a promessa de acabar com a chamada “aprovação automática” – que na realidade só vigorou por um ano letivo no Rio de Janeiro – e estabelecer um controle rígido através de exames externos.
Estes exames, produzidos pela secretaria, são antecedidos por uma série de prescrições curriculares: mapa de descritores por séries, apostilas de atividades, orientações docentes, e precedidos de ranquiamento e premiações de escolas, docentes, gestores e alunos. Apesar de não ser abolido, o referencial curricular pedagógico conhecido como Multieducação torna-se obsoleto nas escolas.
As provas chamam atenção das professoras por suas deficiências técnicas: enunciados e questões mal formulados, a exigência do cartão resposta para crianças pequenas, conteúdos simplificados que produzem uma deturpação conceitual, questões que se repentem ao longo do ano, questões tão dúbias que nem mesmo os professores compreendem.
Diante dos resultados, muitos começam a se questionar sobre a validade deste instrumento para produzir uma informação relevante ou consistente sobre a realidade escolar vivida. Percebem que um instrumento de múltipla escolha, que só se permite examinar um conhecimento reduzido e fragmentado, único para realidades tão díspares, possui tantas limitações que acaba por produzir informações parciais, deturpadas e/ou irreais.
Apesar das muitas limitações destes intrumentos, não são tomados apenas como uma fonte possível de informações, mas como a fonte privilegiada de informações, gerando grandes conclusões que são produzidas e publicizadas sem o cuidado técnico e ético de cruzar estes dados com outras informações relevantes.
Outro aspecto técnico relevante é que em muitos países que adotam o sistema de exames exernos, estes fazem parte de um processo de avaliação sistêmica onde currículos, gestores, infraestruturas e recursos são também objetos de avaliação. A escola é pensada dentro de um conjunto de fatores que produzem um determinado contexto que a sociedade lê como sucesso ou fracasso escolar.
Ao aportar no Brasil a avaliação da própria gestão, do uso adequado ou não de recursos públicos, a logística, a burocracia, os recursos humanos e físicos simplesmente desaparecem da avaliação, sobrando apenas o exame dos resultados dos alunos e dos professores. Nesta simplificação, o exame é apenas um processo de responsabilização dos professores e alunos pelo sucesso/fracasso escolar, cabendo ao Estado avaliar não a escola – instituição pela qual é responsável – em suas múltiplas facetas, mas apenas os sujeitos.
Contudo, a dimensão técnica é apenas uma das questões que podemos abordar ao pensar o Estado Avaliador e as políticas centradas nos exames.
Nossa LDB 9394/96 produzida no calor da redemocratização do país, mesmo não sendo a LDB dos sonhos de muitos de nós, trouxe avanços significativos e alguns desafios para nossas escolas. O sonho da gestão democrática, a busca de um Projeto-Político-Pedagógico que possibilitasse a construção de autonomia e identidade para cada unidade escolar, a possibilidade de criarmos um currículo significativo com nossos alunos.
Sonhos, buscas, possibilidades enterradas diante dos materiais pré-fabricados, massificados, homogeneizados. Os exames externos chegam na escola esvaziando as discussões pedagógicas, políticas e sociais, regulando os currículos, as práticas docentes e subsequentemente a própria formação docente.
Tranformado em um operário o professor perde – ainda mais – seu lugar de intelectual e passa a ser um depositário de informações e coletor de dados, um reprodutor de uma educação bancária, como nos ensinou Paulo Freire. O gestor, assim como a equipe técnico-pedagógica, são reduzidos a burocratas, tendo grande parte de seu tempo absorvido pelo preenchimento de dados, planilhas, relatórios.
Os discursos produzidos sobre a escola democrática, emancipada, crítica, na prática são embotados por ações controladoras, centralizadoras e autoritárias, que retiram cada dia mais das escolas e dos professores a possibilidade de contrução de projetos sociais alternativos aqueles que o estado deseja impor. Que projetos são estes?
Nossa entrada no século XXI é marcada pela discussão sobre o respeito a diversidade cultural, sobre a necessidade de aprendermos a conviver com nossas diferenças e a importância de deixarmos de compreender estas diferenças como deficiências.
No entando a regulação dos exames sobre nossos currículos, apontam exatamente na direção contrária. O processo civilizatório idealizado pela Modernidade continua em curso, e mostra suas garras, nos impondo através destas provas estandartizadas, sua lógica (como a única correta), sua cultura (como a superior) seus conhecimentos e saberes (como os únicos que possuem validade).
Os paradigmas positivistas ganham roupa nova no pensamento neotecnicista, sem contudo afastar-se de sua essência: os seres humanos podem ser medidos por um parâmetro comum, produzidos cientificamente, neutros e objetivos, que nos fornecerão dados neutros e objetivos, para um controle efetivo do produto final. E que produto final é este?
Um sujeito mais educado? Mais culto e letrado? O produto final continua sendo o mesmo que foi produzido nas decádas da escola pensada pela ditadura militar: aqueles (poucos) que melhor se ajustam a forma, que mais se aproximam do modelo pré-estabelecido como ideal pelas elites hegemônicas, talvez possam ser “aproveitados” pelo sistema (mercado) e servirem como exemplo para os discursos meritocráticos. E aqueles (muitos) que não conseguem ajustar-se serão descartados, excluídos e rotuládos como seres humanos “insuficientes”. O produto final continuará sendo um só: fracasso e exclusão de milhares de sujeitos. O produto final continuará sendo um enorme funil onde apenas alguns consiguirão passar. Uma lição que a história da educação nos ensina já faz muito tempo, mas que parece ser desconhecida por muitos gestores, para quem a escola é apenas mais uma empresa como outra qualquer.
Os exames externos, uniformes e planificadores não produzem mais qualidade para educação. Produzem o mesmo que qualquer exame produz: seleção e exclusão. O que produz qualidade de ensino é investimento no ensino.
Chegamos, portanto, a última dimensão que gostaria de trazer para o debate: a dimensão pedagógica.
O exame externo contém uma concepção de educação, uma concepeção do que é conhecimento e de como este se produz, contém uma concepção do que é qualidade escolar. Precisamos nos perguntar se concepções epistemológicas diferentes de como o ser humano produz conhecimento, se perspectivas diferentes sobre o que é o processo de ensino aprendizagem, se projetos políticos de mundo diferentes não produziriam conceitos diferentes sobre o que é qualidade de ensino?
Temos no Brasil escolas com currículos, e concepções de ensino bastante diferenciadas, que no entanto são reconhecidas como “escolas de qualidade”. Portanto acho fundamental que ao defendermos uma escola pública de qualidade, tenhamos a consciência de que este conceito de qualidade não é um concenso, não é algo dado, mas algo produzido nas concepções políticas, históricas, culturais e sociais que trazemos como referênciais.
Precisamos retomar algumas questões pontuadas por Paulo Freire já bastante discutidas ao longo das décadas de 80 e 90 do século passado: a favor de que e contra o que ensinamos? A favor de quem e contra quem ensinamos? Devemos seguir nos perguntando: Ensinar o que e como para formar quem, que tipo de ser humano? Avaliar o que e como a favor de quem e do que? Qual nosso projeto de mundo? Qual nosso projeto humano?
A forma como compreendemos e produzimos a avaliação escolar é uma escolha político-pedagógica, que possui dimensões técnicas, mas que a estas não se reduz. Não é uma escolha neutra, muito menos objetiva. Em um universo cada vez mais extenso de conhecimentos selecionar alguns que irão legitimar e promover um aluno a condição de sucesso e excluir tantos não é objetivo tampouco neutro. Escolher uma única forma de apresentar estes conhecimentos, escolher uma única forma de fazer as perguntas também.
Reduzir o processo de ensinoaprendizagem ao treino pra realizar exames é uma opção política bastante séria. Pagar um “extra” ao professores que melhor conseguirem alcançar este objetivo, é mais do que sério, é eticamente questionável. Reforçar o princípio de que o conhecimento não possui um valor intrínseco, humano, subjetivo, mas é apenas uma mercadoria a ser trocada por outras mercadorias: laptops, celulares, bicicletas, é comprometer-se com a formação de que sujeito e cidadão?
Precisamos retomar a discussão sobre o que é aprender? Como as crianças aprendem? O que é conhecimento relevante? Enquanto somos assoladas na escola com IDEBS, índices, tabelas e gráficos estas questões vão se perdendo, e nós educadores e educadoras vamos sendo engolidos por lógicas mercantilistas que pensam a escola como uma fábrica, seus professores como operários, seus alunos como produtos manufaturados.
Uma nova escola velha, que chega sob a luz dos holofotes pouco críticos da grande mídia, embrulhada em papel celofane, espetacular e barulhenta. Uma escola que já conhecemos, que já vivemos, que tanto criticamos e que tanto fracasso já produziu.
Bibliografia
AFONSO. Almerindo Janela. Avaliação Educacional. Regulação e Emancipação. São Paulo: Cortez, 2005.
BARRIGA, Àngel Diaz. Uma Polêmica em Relação ao Exame. In ESTEBAN, Maria Teresa. Avalição: uma prática em busca de novos sentidos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
ESTEBAN, Maria Teresa. Avaliação: uma prática em busca de novos sentidos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005